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terça-feira, 14 de março de 2017

BEIJANDO BEIJOS

Na obra Cristais Partidos, publicada nos idos de 1915, a poetisa Gilka Machado fala da mulher, comparando-a a uma “águia inerte, presa nos pesados grilhões dos preceitos sociais” e, no soneto Embora de teus lábios afastada, revela o prazer da mulher que tem na lembrança dos beijos em que foi beijada: “beijo teus beijos, numa nova orgia”.
Ela mesma sentiu suas amigas do gênero estar em momentos tantalizantes, “tantálica tristeza” em suas palavras, mito que acompanha a humanidade inteira à busca do prazer inspirado em Eros, deus mitológico grego em que se originou a expressão erotismo.
Anteriormente, nos idos de 2015, abordamos o tema mitológico na versão que chega aos dias de hoje. Vale ressaltar:
A marca de Tântalo, personagem da mitologia grega, aparece no semblante de pessoas aprisionadas em relação patológica, a denominada ligação tantalizante, pois, segundo a tradição, Tântalo tinha roubado os manjares dos deuses e, por isso, Zeus o condenou a passar fome e sede pelo resto da vida.
Na versão atual, o Olímpio vem a se constituir, na terra dos mortais, uma espécie de coisa pública (res publica), ou melhor dizendo, república que não pode ser roubada, conforme largamente anunciado pela mídia. Quando há impunidade é porque Zeus não apareceu nem tampouco Têmis. O símbolo da justiça é Têmis, a segunda mulher de Zeus, sinônimo de poder. A mitologia grega traz lições.
O castigo era circunscrito a um lago que tinha as águas influenciáveis pela maré, fazendo subir e descer de volume. Na subida das águas, ele ficava ansioso porque, submerso até o pescoço, não podia matar a sede. Na correnteza das águas, fluíam também deliciosos alimentos que ele não podia tocar. A vida dele se resumia em expectativas e frustrações.
O suplício de Tântalo é o arquétipo de um relacionamento amoroso onde há evidências patológicas: há a sedução, com promessas encantadoras que nunca chegam a se concretizar. Isto faz parte da conquista e da apoderação.
No caso de mulheres, há a promessa de conquistadores de ficar ou casar com elas, tão logo tenham o divórcio, e isto nunca vem a acontecer, mantendo-as presas a vínculo tantalizante. É o resultado que dá o envolvimento das mulheres com homens casados que nunca se divorciam.
Uma cena da novela Babilônia, levada ao ar, em 11/05/2015, pela TV–Globo, mostra um caso semelhante: o empresário Evandro, vivido pelo ator Cássio Gabus Mendes, se encontra com a namorada Alice, papel da atriz Sophie Carlotte, para explicar que a esposa dele Beatriz (atriz Glória Pires) não irá lhe dar o divórcio. Se ele partir para litigioso, conforme alega, será obrigado a abrir as contas da empresa, e finaliza: “E o próximo passo é a Polícia Federal na minha porta, me levando pra cadeia!”. 
Desde o início, o sado-masoquismo é aceito, sem que elas percebam o relacionamento doentio que oblitera qualquer perspectiva de um amanhã feliz. No entanto, sentem-se felizes nessas circunstâncias, vai chamá-las de pobres moças para ver o que acontece? Briga, na certa! Dar trabalho a suas amigas, isso dá.
Segundo o psicanalista David Zirmeman, autor do Manual de Técnica Psicanalista, esse tipo de relacionamento tende à cronificação no jogo sedutor de dar e retirar, mantendo-se a vítima prisioneira de situação que a faz esperar quando não há evidências de caminhar juntos em clima de certeza e confiança. As ilusões narcisistas são muito fortes, geralmente ligadas aos sentidos, onde o amor renúncia, que poderia surgir, é algo a acontecer.
Há sempre um passado comprometido que oblitera uma relação sadia, desde que não haja peso nem referência, pois valorizamos aquilo que damos crédito e confiança. Como desligar-se de uma união, onde a viuvez está presente? O luto não pode ser permanente, a menos que haja um clima sadio para se viver em celibato, outra vez.
Se viver uma relação tantalizante, quando um dos parceiros ou parceiras estava presente fisicamente é algo patológico, quanto mais vivenciá-la essa relação, quando as lembranças de quem morreu escravizam. É uma obsessão espiritual que precisa de cuidados para que cada um siga o seu caminho, sem nenhum vínculo que os fazem sofrer. O amor é libertação e não apoderação que avilta a dignidade humana.
Em todo o mundo existem milhões e milhões de casais que carregam no rosto as marcas de Tântalo, até mesmo nas novelas de televisão surgem cenas comuns de casais que têm esse sofrimento, tão antigo e tão fácil de ser debelado.
Essa conduta televisiva passa a ser normal para quem não tem outras perspectivas mais favoráveis, pois sofredoras acham que amar é sofrer, é relação patológica que precisa de cuidados especiais para que a separação não traga as marcas de Tântalo nem mesmo a do fantasma que pode estar em outro lado da matrix. [A MARCA DE TÂNTALO – 11 de maio de 2015 – blog Fernando Pinheiro, escritor].
Na maioria dos amores terrenos, subjugada ao paradigma da competitividade e separatividade, ocorre a separação no plano físico e transferida para o plano extrafísico, quando em ambos já não há mais a possibilidade de fazer o colapso da função de onda. A matrix é transferida para o outro lado da matrix.
A nova orgia que dá acesso aos beijos beijados, ou melhor dizendo, beijando beijos, em lembranças imorredouras da mulher, pode estar em momentos que a saudade apenas dá uma dor passageira que acaba com a chegada da pessoa amada.
Não é necessariamente na relação homem e mulher que isto acontece, mas também mulher e mulher como já se via, em 1954, numa cena passageira do filme A última vez que vi Paris, dirigido por Richard Brooks e, mais recente com maior amplitude, em 2015, em Carol, filme sob a direção de Todd Haynes.
No cinema brasileiro esse tema foi abordado em Dois Casamentos, filme de longa metragem de Luiz Rosemberg Filho, classificação 14 anos, ano de 2014, é estrelado por Patrícia Niedermeier, no papel de Carminha, e Ana Abbott, vivenciando Jandira, ambientado no lugar escuro, onde apenas as atrizes, vestidas de noivas, sem véu, são focalizadas. A nossa apreciação deste filme foi através da crônica SÉM VEU – 25 de outubro de 2015 – blog Fernando Pinheiro, escritor.
Todo o transcurso do filme é abordado o tema casamento na vida das pessoas, tendo como condutora do diálogo Carminha que mostra um discurso acerca da condição da mulher perante o marido e a monotonia do casamento, no dizer dela, entre os casais. Jandira a ouve atentamente, sem compreender o pensamento da amiga que está ao lado, na mesma condição de noiva.
Com o desenrolar da cena, em diálogo, Carminha vai tentando convencer Jandira sobre os seus pontos-de-vista que a faz pensar um pouco e com certa desconfiança em contraste com a ideia que ela alimenta do casamento.
Há uma aproximação propositada de conquista amorosa que, a princípio, Jandira acha esquisito, mas como a forma de se aproximar é com leveza e elegância, aos poucos vai se entregando ao que ouve e sente. Com as mãos nos cabelos de Jandira, Carminha diz que está a fim dela.
Sozinha, Carminha solta os cabelos e começa a dançar com o olhar de encantos em cima de Jandira que, achando natural dançar, dança também acompanhando a amiga, ambas dançando separadas em seus rodopios sensuais.
Após a dança, Carminha toca os cabelos de Jandira e fala dos homens que não sabem se aproximar das mulheres, nem pegar mesmo sabem, no entanto, pegam as mulheres sem que as mulheres descubram que há um toque mais encantador de pegada.
A conquista vai prosseguindo sem artimanhas ou malícias, pois deixa a amiga se aperceber que gosta do que ela fala, sem buscar convencê-la, deixando ela se convencer à vontade. Era como uma isca lançada na água, sem a preocupação de pescar.
Ao que pudemos perceber, Carminha usou uma tática utilizada muito por quem pratica taoísmo. Na última parte do filme, Carminha tem condições adequadas de tirar aos poucos a parte superior do vestido e Jandira faz o mesmo. Ambas, sem roupa, se tocam e a escuridão do cenário não permite a visão do que estão fazendo, ouve-se apenas Jandira dizer é assim, deste jeito ou de outro jeito, qual é o que você gosta? O filme acaba nesse clima. [SEM VÉU – 25 de outubro de 2015 – blog Fernando Pinheiro, escritor]
No filme Perfume de Mulher, dirigido por Martin Brest, há o encontro do ator Al Pacino, no papel de Frank, com a Donna, interpretada pela atriz Gabrielle Anwar em que se evidencia o início de atitude que irá refletir no relacionamento que ela tem com o noivo, naquele momento ausente. Na premiação de Hollywood, o Oscar de melhor ator foi para Al Pacino. Vale mencionar textos da crônica DANÇANDO TANGO, publicada em 29 de agosto de 2015:
Antes da dança, Frank, deficiente visual, aproxima-se da mesa onde está Donna e a convida para dançar. Ela com receio de que o noivo possa chegar a qualquer momento, hesita em aceitar o convite, ele argumenta: “num momento, vive-se uma vida”, ela, então, se levanta, coloca as mãos nos ombros do partner, ele sente o perfume de mulher.
No meio da dança, há um toque de sedução, a moça percebe, dá um suspiro e sorri discretamente, mas ele sente a receptividade, levantando o astral, vamos dizer a libido, pois ele estava deprimido por pensamentos pra baixo em decorrência do acidente que o vitimou no quartel. Este é o ponto máximo de audiência do filme em vídeo e no cinema.
A moça, sem a presença do noivo, estava em libertação íntima, queria desligar-se um pouco do romance ainda sem os liames eternos. Na vida real, a maioria dos casais insatisfeitos, estão em libertação a caminho da liberdade. Essa libertação é cruel porque os vínculos permanecem na monotonia e precisam de um ímpeto para rompê-los.
Esse impulso foi observado por Nietzsche, filósofo alemão, ao escrever a obra Humano, Demasiado Humano: “é o despertar da vontade e do desejo de ir embora, não importa para onde, a qualquer custo: uma violenta e perigosa curiosidade por um mundo desconhecido arde e cintila em todos os sentidos.” [DANÇANDO TANGO – 29 de agosto de 2015 – blog Fernando Pinheiro, escritor]  
Gilka Machado (1893/1980) é lembrada como a maior presença feminina do movimento simbolista brasileiro, comparando a mulher “águia inerte, presa nos pesados grilhões dos preceitos sociais”. O movimento feminista avançou a partir dos idos de 1914, quando foi apresentado, no Palácio do Catete, o tango-brasileiro Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga (1847/1935), compositora, pianista e maestrina e, no ano seguinte, a publicação da obra Cristais Partidos, de Gilka Machado.

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