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domingo, 30 de setembro de 2012

O RIO

    Amparada  no  movimento  lânguido,  compasso  2/4,  a  música O Rio, de Paulo Libânio, foi escrita em 20 de março de 1988, com a letra do poeta Vinícius de Moraes que revela, inicialmente, uma gota de chuva a mais penetrando um ventre grávido que fez estremecer a terra. O contexto geográfico é revelado por antigos sedimentos, rochas   ignoradas, pedra preciosa e materiais fósseis. A letra revela ainda:
“Um fio cristalino, distante milênios, partiu fragilmente sequioso  de  espaço  em  busca  da  luz.”
        A mensagem do poetinha, nome carinhoso como é  conhecido entre os cariocas que o admiram tanto por ter  colocado  os  versos  da   música   Garota  de  Ipanema,  de  Tom  Jobim,  nos  quatros   cantos  do  mundo,  traz  um  roteiro  de   uma   vida   no  campo  mineral,  mas  o  sentido  transcende  a  outros  reinos  da  natureza.
        Preliminarmente,  observamos  o  nascer  do  rio,  a  partir  de  uma  gota  de  chuva  que  cai  numa  porção  de  água  e  a  faz  transbordar  a  caminho  de  planícies  que  serão   transformadas   em   searas   férteis.
        No percurso em direção ao mar, o rio passa por antigos  sedimentos, rochas ignoradas que contém ouro, carvão, ferro,  mármore. O  reino  mineral  permanece petrificado  nas  rochas,  mas  se movimenta  nas  águas  que    possuem  um  destino.
       A evolução anímica nasce no reino mineral, mais  precisamente  na  água,  se  expande  no  reino  vegetal   e  ganha   impulsos   maiores   no   reino   animal,   sendo   que  no  homem  a  consciência  do  mundo  é  mais  evidente  do que   qualquer  outro  estágio  evolutivo.
       Assim como no subsolo da terra existem riquezas adormecidas: ouro, carvão, ferro, petróleo, mármore, água, etc., no ser humano há outros mananciais ou potencialidades que estão armazenadas em sua interioridade mais profunda,  em  forma  latente, e prontas para  serem  manifestadas.
        A  indústria  busca  a  matéria-prima  para  fabricar seus produtos, a sociedade também tem recursos de criar ambientes humanos onde as qualidades de vida, talentos pessoais podem ser manifestados livremente. Daí surgem escolas, hospitais,  empresas,  indústrias,  comércio,  turismo,  lazer.
       O progresso material já alcançou estágios evolutivos onde promovem o bem-estar humano, entregando à máquina o que antes era feito com as mãos. Na área da comunicação,   as  informações  são  prestadas  e  recebidas  em  profusão  em  todas  as  atividades  humanas.
       No caminhar do homem, assim como o do rio, surgem  obstáculos  que  são  vistos  e  até  mesmo  apreciados  como sinal que aumenta a nossa atenção ao trabalho empreendido.  O  passo  firme  é  o  ritmo  que  anuncia  a  passagem  daquilo  que  está  parado,  sem  possibilidade  de  nos  acompanhar.
      A letra da música finaliza dentro de um contexto histórico, numa trajetória milenar: “um fio cristalino distante  milênios partiu fragilmente sequioso de espaço em busca da  luz.”
     Quando vemos, pela televisão, a destruição de matas, consequentemente de inúmeras plantas medicinais ainda não catalogadas, bem como aves e animais que nelas vivem,  pensamos que a  natureza gastou milênios para formar esse santuário ecológico, com ecossistemas favoráveis à fauna e  à  flora.
       O rio que nasce de fio cristalino, distante milênios, por   ser  a  própria  água,  o  primeiro  elemento  criado  na  terra,  parte  em  busca  de  espaço  até  atingir  o  mar.  Nos  versos  de Vinícius de Moraes, o fio cristalino, que vira rio, parte em  busca  da  luz.
       No ciclo da evaporação e do derrame de águas, em forma  de  chuva,  podemos  presenciar  a  água  em  forma  de  luz no fenômeno do arco-íris, onde as cores, que nele estão, refletem  imagens  ideoplásticas  de  beleza  encantadora.
      Assim como acontece no fio cristalino partindo,  fragilmente  sequioso,  em  busca  da  luz,  no  ser  humano a  mesma  trajetória  é  percorrida,  a  nível  de  interioridade  de  alma,  a  nível  de  coração  como  dizem  os  poetas. O arco-íris é a aura de esplendor das águas, assim como a irradiação luminosa pertence àqueles que semearam a beleza.

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sábado, 29 de setembro de 2012

A FLOR DE AGUAPÉ


    Escrito para o Canto Coral Feminino do Instituto de Música de São Paulo, a música A Flor do Aguapé, de Paulo Florence (1864/1945), é destinada para sopranos e contraltos e apresenta os seguintes movimentos: suave, vocalizando, mais vivo, diminuindo, vocalizando, poco crescendo, diminuendo. A letra foi composta por Dom Aquino Corrêa, imortal da  Academia   Brasileira   de   Letras.   
Com letra de quem conheceu as paisagens íntimas  da alma humana e, externamente, a do pantanal mato-grossense, região onde foi bispo da Igreja Católica, com    grande elevação espiritual, a música descreve um roteiro em   que  o  mundo  está  envolvido.
O sacerdote observa a beleza da flor de aguapé se abrindo em largas e verdes folhagens com a presença de     beija-flor voejando e beijando-a ao redor. Há um clima de   festa,  a  flor  triste  um  pouco  antes,  com  o  beijo  palpita  e  sorri.
         Com  a  enchente,  o  cenário  singelo  muda  de figura.  Os  roncos  da  enchente    anunciam  a  derrocada  que  vem  surgindo.  Surgem  pedaços  de  terras  flutuando  descendo   rio abaixo, num deles está descendo a flor de aguapé, murcha  de  mágoas.
       Esta imagem descritiva tem grande ressonância em   nossos dias quando vemos cenas de desencantos nos  ambientes onde o vício arrasta à degradação moral  contingentes de pessoas que, após a aparente alegria, são levados  à  solidão  e  à  morte.
        A  beleza  do  corpo  -  a  flor  do  aguapé  -  floresce  em  nossa  vida  para  dar  encanto  a  este  mundo  que  um  dia  terá  as  blandícias  do  paraíso,  esta  é  a  certeza  daqueles  que  vieram  ao  mundo  somente  para  servir.  Nem  todas  as  flores  são  arrebatadas  pelas  enchentes  dos  rios,  como  nem  todas  as  criaturas  humanas têm  o  mesmo  destino.
       Os desencantos surgem para mostrar o desvio do   caminho.  A  mágoa  -  raiz  arrancada  pelos  estos  bravios  -   é  o  desconforto  do  momento  e  vai  recrudescer,    adiante aonde  a  aurora  vem  surgindo  límpida  e  clara,  a  lembrança dos dias felizes, os amores que nos ofereceram ternura,   abraços  e  beijos.
       Na segunda voz de A Flor de Aguapé há um canto  transformado em beijos que Alberto Nepomuceno, na música  As  Uyáras,  op. 15,  decifra:
“...  Às  vezes  se  escuta  na  queixa  do  rio  um  canto  macio  de  quem...  não  se  vê. /  O  canto  se  estende  mais  doce  que  as  moitas  que  dormem  silentes  às  luzes  do  céu...”
       Identificado  o  brilho  das  bolhas  de  sabão,  ninguém  o  pega, ninguém o cultiva, ninguém o colherá! São beijos que     as uyáras atiram ao sol, morrendo sempre na ilusão! A luz do arrebol é a imagem de fé que prevalece diante das  paisagens  onde  vive  a  flor  do  aguapé.  Os  destroços,  o  caminhar para a morte estão agora à mercê do destino que   não  podemos  saber.
        Boiando  pelo  rio  abaixo,  os  camalotes  que  carregam  a  flor  de  aguapé  têm  o  destino  da  destruição,  o  mesmo  daqueles  que  encobriram  com  camadas  sombrias  a  luz  divina  que  está  ofuscada  interiormente.  As  sábias  palavras do saudoso bispo católico (duas vezes imortal) permanecem    em  nosso  coração:
“Que  Deus  se  amerceie  da  flor  e  das  almas  que  vão  para  além  e  leve-as  ao  porto  em  que  viçam  as  palmas  do  amor  e  do  bem.”

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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

TEU NOME


Escrita nos idos 1973 a música Teu Nome, de Osvaldo Lacerda, destinada para canto e piano, traz os versos da  poetisa Cecília Meireles que repetem “respiro teu nome” em  cinco  estrofes.
Respirar é, antes de tudo, viver. Todos sabem que, nas pessoas  e nas plantas, sem a respiração a vida não existe. Respirar o nome da pessoa amada é navegar mundos em que o sonho tem  o  reino  de  encantos.
Pensar na pessoa amada leva-nos a um doce eflúvio,  despertando-nos sentimentos em que surge a voz da canção    de que nos fala a poetisa. O sentimento de amor se espalha  levemente, como uma brisa quase impercebível à luz do luar,  aclarando aspectos emocionais de situações difíceis e de  mistérios.
Não há um limite definitivo entre a realidade e a ilusão. Existe  a margem que delineia um e outro, dentro de uma flexibilidade que muda constantemente na medida em que revelamos comportamentos diferentes. Os sonhos podem estar tanto na realidade como na ilusão e é impossível permanecer longo tempo na linha divisória porque nossos pensamentos, criando circunstâncias, têm um destino que se modifica. O destino  somente  é  estável  dentro  da  situação  estável.
Quando não o conhecemos, pensamos que o nome da pessoa  amada é tudo, porque o moldamos dentro de nosso sonho de  amor, às vezes sem que ela participe. Entre o comprador e o  vendedor, o produto só muda de lugar quando o negócio é fechado. Não há transação individual, unilateral e solitária, por que no amor funcionaria diferente? É impossível. Na busca do envolvimento amoroso, sem a participação de um dos pares, é  impossível a união, mesmo sendo tudo para quem a deseja,  não  passa  de  uma  ilusão.
Na incompreensão do que acontece no envolvimento, pensamos em sorte, quando os acontecimentos nos favorecem e azar quando são diferentes, sem sabermos que, na realidade em que vivemos, há um mecanismo que estabelece aquilo que, por  algum  mérito,  merecemos  ter.
No contentamento da poetisa, límpido e vão, dá a  ideia de  estar solitária, com seus pensamentos de amor. Em cada  momento, ela respira o nome do homem amado e, como o sonho é alto e a sua mão é rasa, não atinge as alturas e vê que, ao redor, tudo é ilusão. É o extremo dos amantes: inferno ou  paraíso.
Acreditamos que seja um amor platônico dormindo numa espera sem fim, onde em algum momento inesperado possa surgir o despertar para uma realidade mais confortadora, sem  ilusão  nem  sonhos,  talvez  a  presença  da  pessoa  amada.
O nome da pessoa amada acompanha os passos de quem ama, independente de estar perto ou longe; são vibrações alimentadas por pensamentos que recrudescem o passado,  mergulhado no inconsciente coletivo de que nos falou o filósofo Carl Jung, e que voltam à tona, à medida em que a mentalização (mais precisa do que a chamada telefônica), é  realizada.
Concluímos realçando o quanto é importante a forma como direcionamos o pensamento, pois estabelece o nosso destino e, vamos sempre, aqui ou alhures, para onde a nossa vibração se estabelece, independentemente de estarmos vivos em corpos físicos ou vivos em transcendência da matéria física, em  campos  astrais  ou  campos  siderais. 

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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

QUANDO OUVIRES O PÁSSARO


Escrita em junho de 1970, na capital paulista, a música Quando ouvires o pássaro, do compositor Osvaldo Lacerda, é  destinada para canto e piano, e traz a letra do poeta Cassiano Ricardo (1895/1974), imortal da Academia Brasileira de Letras.
A  letra  da  música  é  um  bilhete  à  mulher  amada.  Ele está ausente e nessa ausência vê situações amorosas em que faz, em breve litania, uma negação. A primeira negativa do enredo  quase  anuncia  o  título  da  música.
A litania prossegue revelando outro intérprete do canto de amor ao ouvido da mulher amada: o vento da cerração, e na última negativa de revelações, o poeta coloca em questão um  mensageiro  de  carta  anônima.
A afirmativa chega ao final do poema. Ele não sente a clareza dos sentimentos dela, intimamente está no escuro, e chora. As lágrimas - gotas d'alma  - caem em ambiente triste. O cenário, que desdobra o estado emocional do poeta, é o chão, escuro,  triste, sob a goteira caindo sem parar.
O clima realmente não é favorável para encontros, pois ele sente a dureza do coração dela. No entanto, parece ter persistência no amor que sente, transformado em lágrimas, caindo em gotas incessantes. Mesmo assim, parece evocar a esperança que vem  do adágio popular: “água mole em pedra dura, tanto bate até  que fura”.
A insistência no amor é muito diferente de outras tentativas,  porque é regulada por ações que dependem da forma de sentir a necessidade de prosseguir ou parar. Naturalmente, se houver  esperança perceptível, vale a pena aguardar o tempo que for  necessário. Se não houver esperança delineada em horizonte  ainda não iluminado, então o negócio é arriscar: jogar tudo ao  destino ou esquecer por completo.
Mesmo nesse jogo arriscado, ninguém pode prever as  mudanças que podem ocorrer, facilitando aquilo que parecia impossível. O tempo desgasta tudo, até mesmo  situações  estáveis de hoje e, mais tarde, consideradas instáveis amanhã, dependendo das circunstâncias favoráveis e da força de      quem  as  impulsiona.
O canto da música é revelado por letra que revela outros  cantos  na voz do pássaro em frente ao quarto da mulher amada, do  vento frio que anuncia cerração e, ainda, do canto silencioso de  uma carta anônima.
A presença do poeta, chorando sem parar pelo amor da mulher  amada, é uma goteira caindo sobre um chão escuro. O poeta ama e crê em si mesmo, em seu coração extravasando sentimentos que podem encher rios de lágrimas.
Como todo  grande rio, haverá sempre um mar que o acolherá, como  também um amor que o fará esquecer os desencantos. O que prevalece é o canto pela mulher amada.

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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

POR QUÊ?


Escrita para canto e piano, em 24 de setembro de 1988, na cidade de São Paulo, a música Por Quê?, de Osvaldo Lacerda, inicia-se em movimento crescendo poco a poco, diminuendo poco a poco, menos movido, ainda um pouco menos triste, e finaliza  em pianissimo marcato.
O renomado compositor Osvaldo Lacerda (1927/2011) presidiu as seguintes entidades culturais: Sociedade Paulista de Arte, Sociedade Pró-Música Brasileira, Centro de Música Brasileira,  de  São  Paulo – SP.
Os versos do poeta Guilherme de Almeida (1890/1969), imortal da Academia Brasileira de Letras, contidos na música, fazem  perguntas à mulher amada.
É completamente impossível responder aos versos do poeta, principalmente porque as perguntas são endereçadas à    mulher amada, nem ele próprio e nem o compositor conseguiram. Aliás, é mister dos dois artistas manter a  pergunta  no  ar.
No entanto, depois do fraseado musical que acabamos de comentar, cabe-nos a tarefa de analisar o texto sob o aspecto filosófico, ricamente estruturado em metáforas que invadem o  campo sentimental e nos revela a interioridade da alma  humana.
Há o encontro de um casal, à hora morta da noite. Ela o   espera  e  abre  a  porta,  corresponde  ao  sorriso  que acabara de receber e a rosa é segura pelas suas mãos. Depois, acende  a  lâmpada e a lareira, estende a esteira; fecha a porta, tira os  brincos, solta os cabelos e tira o cinto de couro.
A hora é de entrega. O leito estendido à espera dos jogos  amorosos. Os olhos são fechados, a boca é aberta. Beijos de bom–bom, tão bom! Doces e aromatizados, perfume de mulher, essências aromáticas se misturam numa atmosfera criadora  que somente os pássaros possuem.
Fantasias pré-concebidas se misturam com a improvisação de carinhos que nascem na movimentação dos corpos febris e ardentes. A alma dos amantes se descontrai em eflúvios como as cachoeiras derramando águas pelo rio abaixo.
Névoa de sonhos se estende nos pensamentos contemplativos da beleza,   como se fosse a madrugada cinzenta correndo afugentada    pela luz do alvorecer. A névoa  é o corpo e a luz do alvorecer é    a alma. O rio abaixo é a vida que se estende pelos caminhos  infinitos.  A  água  é  a  sabedoria  do  viver. 
Quando a vontade dos amores e o destino não se  completam,  ocorre sempre o adeus, mesmo aquecido por horas febris no  calor dos sentimentos. É muito comum, o encontro amoroso,  em uma ou outras vezes, seguido de uma separação.
Não há  fracasso porque a voz do destino ecoa por último, e é sempre determinante, até mesmo contra a vontade de quem gostaria   de permanecer junto a alguém.
O poeta Guilherme de Almeida, o artista do verso, enriquece o canto de Osvaldo Lacerda, no momento em que o encontro  de  casais passa a ser o centro de referência para formação de uma família e a união de casais que buscam uma troca de  experiência no campo sentimental.
As últimas perguntas à mulher amada entram no campo  subjetivo: “Por que ouviste o que eu não disse? Por que disseste o que não ouvi? Arriscamo-nos a dizer que ela percebeu mensagens, via pensamento ou gestos, que lhe diziam a  verdade da alma. E nem precisava ele dizer o que para ela já   estava  decidido.
A mulher amada ficou de mãos dadas na despedida porque o  último momento teria que ter o carinho feminino que  permanecesse acima da saudade que ele, certamente, iria,   mais tarde, sentir. O carinho que ela manifestou, no adeus,     já não era sensual, apenas amigável, porque ela já estava apaziguada com os sonhos que ainda não apareceram, os  sonhos  do  verdadeiro  amor.

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terça-feira, 25 de setembro de 2012

MURMÚRIO


Destinada para canto e piano, a música Murmúrio, de  Osvaldo Lacerda (1927/2011), composta em 1965, traz os    versos da poetisa Cecília Meireles, sendo que nas duas primeiras estrofes a música é expressa no movimento lento, suavíssimo e, na última é poco animando. A letra da canção possui três pedidos.
Pedir é sempre uma forma de buscar algo que nos falta, a começar por pedir a proteção divina imantada em tudo. A vida sempre nos dá aquilo de que necessitamos, mesmo que seja em forma diferente do que pensamos. A sabedoria está em compreendê-la.
Esse cuidado teve a poetisa em situar seu pedido entre algo mais denso e profundo e a condição que surge quando há  acontecimentos que nos interligam. Quem não se beneficia da sombra quando está passando embaixo de árvore situada em  frente da casa alheia? Ou, na escuridão, da luz quando alguém  acende uma vela?
Na segunda estrofe, a letra da música menciona a alvura que   vem dos luares e que a noite sustenta no coração da pessoa  amada. Um pouco apenas é o pedido para ficar perto... um  instante apenas, o suficiente para sentir a alvura dos luares.  Não há expectativa de um sonho de uma vida no mesmo  destino.
A mensagem da poesia, que a música encerra, é revelar  sentimentos que há muito tempo foram esquecidos e que   ainda  podem  ressurgir,  bastando  apenas  um  impulso,  um  respirar do aroma que sentimos no passado. Quem não  gostaria de aspirar o perfume da flor que há muito tempo não   a  vê?
A poetisa sente o amor, em sua plena forma, estende um olhar em direção da pessoa amada e a revela, em silêncio, o que é  amar. O que já sente, não precisa mais sentir: alegria, ilusão,  esperança,  sonho.
Quantos amores que nos deixaram uma réstia de luar, um pouco de calor do pôr-do-sol que se despede numa paisagem  paradisíaca, estão agora caminhando em outro destino e tão   perto de nós pelo sentimento em comum que temos? O perto e  o longe é questão de sentir. O perto pode estar longe e o longe  pode estar  perto.
No clima do enlevo dos amores, sentir o que já se sentiu e não  sente mais, e buscar sentir outra vez, é colocar o coração à flor  da pele, sujeita à queimadura de sol, se houver mudança das  condições anteriores, ou à placidez do luar se o enlevo do que  foi antes persistir.
No dilema de amar o que se perdeu e amar o que precisa  apenas de um aroma para ser lembrado, recordando Carlos Drummond de Andrade (“amar o perdido, deixa confuso este coração”), pensamos na espontaneidade que vem da ternura  dos amores que não precisam buscar nem  fugir.
A letra da canção é um ponto de ligação do aroma perdido,  saudade da flor e de um pouco de lembrança que é pedida   para ser mais lembrada. Tudo é questão de sentimentos, de coração, de alma, como se expressaram Cecília Meireles e  Osvaldo Lacerda.

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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

ROMANCE - Opus 6


A música Romance – Opus 6, da compositora Najla Jabôr, inicia-se largamente e em andante animato. A letra é do poeta  J. G. de Araújo Jorge (1914/1987). Os primeiros versos do  soneto apresentam um convite:
"Há na expressão do céu um mágico esplendor  { bis
e em êxtase sensual a terra está vencida...        { bis
deixa enlaçar-te toda, a sombra nos convida,
e a noite como esta é feita para o amor...”
Najla Jabôr Maia de Carvalho (1915/2001) destacou-se na  música  como  a  primeira  mulher  a  escrever,  no  Brasil,  um concerto para piano e orquestra. Tivemos a notícia de que esse concerto teve a estreia, nos idos de 1972, na cidade do Recife – PE.
À noite, no Mirante do Pasmado, em Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, os casais de namorados avistam a cidade encoberta de segredos de alcova que ninguém consegue saber. A brisa, que perpassa pelo arvoredo, traz um cheiro do verde da vegetação que se debruça morro abaixo, misturando-se com o  perfume de mulher.
Sonhos são revelados em ternura que parecem não existir; carinhos viajam nos beijos, abraços e olhares, guardados por um tempo sem conta, e mergulham enfeitiçados num doce encantamento, imitando as estrelas viajando por caminhos que  se  perdem  pela  noite  adentro.
Às vezes, um só fato toma conta do universo. A ressonância alcança os mais longínquos recantos do planeta, despertando, dentro dos rumores de guerra, até mesmo aqueles que não desejam ver: “a Terra está vencida”. A hidra está solta, a águia americana  voa  sobre  o  deserto, estendendo seus domínios.
Mesmo em tempo de guerra, os amores se afastam, numa despedida silenciosa, crendo mais na vida do que na morte. Tudo parece ser sem sentido. A viagem, o desconforto de um adeus, sem a certeza do retorno aos seus lares e a contradição de tudo que aprenderam a construir numa vida pacífica, agora parece estar sendo desvanecido pelos ares.
A vida continua... dias de luta sempre existiram. Construir e destruir não podem ter a mesma finalidade, embora a  reconstrução seja feita nas mesmas bases em que a destruição deixou resquícios. No ser humano, é a mesma coisa: os traumas comprovam o passado danificado, vivendo um processo de reabilitação das forças que entraram em atrito com o equilíbrio que move as estrelas e envolve o homem numa redoma quase  imperceptível.
Os amores, ligados a essa vibração que vem das estrelas,   sentem que a noite é propícia para amar. As vibrações da luta pela sobrevivência são momentaneamente abafadas num olhar doce, num sorriso terno e num pensamento que demonstra o amor presente. O mágico esplendor do céu é muito maior do que tudo aquilo que pode atemorizar  nossos  dias.
Procurar a noite nos cabelos da mulher amada é muito melhor do que procurá-la nos acontecimentos que trazem luto, destruição e pavor. Até certo ponto, precisamos saber de notícias que abalam a tranquilidade dos povos, a fim de que possamos fazer uma singela mentalização de amor que,  acreditamos,  não  será  perdida.
Se a sombra se estende lá fora, um pouco mais adiante haverá claridade; nossos passos serão sempre em busca de um lugar seguro onde possamos viver contribuindo para que esta felicidade, que buscamos, seja a mesma daqueles que passam por atrocidades inenarráveis. O importante é acreditar, o resultado virá a caminho. O destino do mundo é um romance. O que hoje é sombra, amanhã será luz.

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domingo, 23 de setembro de 2012

MADRUGADA NO CAMPO


Escrita nos idos de 1948, a música Madrugada no Campo, é de  autoria do compositor, violinista e musicólogo Luiz Cosme (1908/1965), conhecido autor de Salamanca do Jirau, bailado inspirado no folclore gaúcho que foi apresentado  ao público, em outubro de 1936, pelo maestro Heitor Villa–Lobos, à frente da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. No ano seguinte, foi executado pela  Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, sob a regência  do maestro Francisco Mignone.
A letra da Madrugada no Campo consta do livro Mar Absoluto e outros poemas, de Cecília Meireles (1901/1964) que emprega imagens sutis, quase etéreas, reveladas no amanhecer no campo. As palavras “doçura”, “arrozal” e “cristal” estão presentes em todas as estrofes da poesia.
Nos primeiros versos, a doçura vem da brisa que penteia a  verde seda fina do arrozal. Há uma vantagem maior da brisa na comparação velada dos cílios, plumas, lume de lânguida lua e  suspiro do cristal.
  A poetisa enaltece a doçura da brisa diante de adornos que realçam a beleza feminina: cílios, plumas e tirou da natureza outros encantos, o lume lânguido que se derrama do luar, criando clima de idílios amorosos, e o suspiro da água cristalina gotejando que dá uma sensação de paz.
A exaltação da doçura está presente na transparente aurora que tece na fina seda do arrozal aéreos desenhos de orvalho. A comparação atinge a sutilezas que revelam a beleza que vem da lágrima e seus mistérios recônditos, como também estende no céu, no mesmo lugar onde a aurora surge, um arco-íris que  revela cores em forma de cristal.
Associadas umas as outras, num mesmo diapasão de beleza,  as imagens ideoplásticas, que a poesia de Cecília Meireles revela e a que a música canta, em movimento andantino, têm o encantamento da hora do amanhecer no campo. Os sentimentos poéticos e românticos têm afinidade com a  vibração que emana dos fenômenos da natureza.
A poetisa destaca a joia que adorna o corpo feminino,  principalmente o colo: a pérola. Quantos romances de amor  tiveram início com o presente de colar de pérolas à mulher  amada! Mesmo assim, ficou em segundo plano ao apreciar        o  amanhecer.
A doçura, supremacia que se destaca diante de tantos   encantos e adornos femininos, revelada pela poetisa, ganha    voo em direção das borboletas brancas prendendo os fios  verdes do arrozal com leves laços. A imagem agora é  completamente  etérica,  perceptível  mais  pelos  olhos  d'alma.
A beleza oriunda dos leves laços de fios verdes, que as borboletas–fiandeiras tecem, encontra uma comparação menos apreciada nos dedos da mulher, nas pétalas de rosa, e no frio  aroma de anis em cristais.
As  mãos  da  mulher  amada  que  afaga,  abençoa  e dá adeus, vêm revestidas de carinho, bondade, ternura e meiguice que encantam. Estar de mãos dadas é receber toda essa energia que dulcifica o nosso viver. Será que a doçura do amanhecer, revelada pela poetisa, tem maior requinte e beleza?
Nos últimos versos da canção, Cecília Meireles valoriza a transcendência. Há doçura no pássaro imprevisto que tomba no verde arrozal. Unindo o que antes estava sutilmente separado,  o elogio tem excelsitude diante da vida que transmuta a outras  formas  mais  sutis:
- “Caído céu, flor azul, estrela última:
               súbito sussurro e eco de cristal.”

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