Nos idos de 1964,
a Escola de Samba Império Serrano entrou na Avenida Presidente Vargas para
apresentar o seu carnaval que é o Brasil em forma de aquarela e fez um passeio
pelo País inteiro revelando o que existe em cada região. Quarenta anos depois,
em 2004, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, na cidade do Rio de Janeiro, o
samba foi reapresentado pela Império Serrano. Ao nosso ver, é o melhor
samba-enredo de todos os tempos.
Na narrativa
surgem vastos seringais no Norte, e no Nordeste os lindos coqueirais nas
praias, o acarajé, comida típica baiana, as festas de frevo e maracatu em
Pernambuco, a arquitetura de Brasília, a garoa em São Paulo, e as batucadas e
os requebros febris das mulatas. Este é o cenário de comovente beleza onde se
estende imensas matas, cachoeiras e cascatas.
Da obra
HISTÓRIA DO BANCO DO BRASIL, de Fernando Pinheiro, transcrevemos textos
autorizados do discurso de Martins Napoleão, consultor jurídico do Banco do
Brasil (3/5/1967 a 16/9/1977), proferido, em 20/2/1952, no qual aborda os tipos
regionais do Brasil, tema da música em pauta.
"Na
pluralidade dos tipos que se ajustam e reajustam nas lutas de fixação étnica do
País, e integram de um colorido inimitável a sua unidade social, econômica e
cultural, cinco há que se personalizaram definitivamente, dentro e fora, na
alma e no corpo: o caboclo, o praieiro, o caipira, o gaúcho e o sertanejo, com
as suas características acentuadas, nas grandes zonas brasileiras.
O caboclo é a
incompreendida esfinge humana da Amazônia. Tem todas as grandezas, na face de
bronze e na estatura mediana do índio, cujo sangue lhe corre férvido nas veias.
(...)
Solidário (não
solitário), reparte a vida entre a rede armada do tejupá de construção
palafita, e a igara furadora de rios. Pesca, como adivinho. O arpão é-lhe uma
arma de farpear, que só encontra na flecha com que abate as caças, na espera,
no corso ou no voo.
Seu horizonte
visual, limita-o a cinta corrediça do rio, ou a cúpula da mataria de
assombração. Pouco lhe importa, a ele na dureza do mister cotidiano, a fragilidade
da montaria veloz, cavada num só tronco. Vive perigosamente a vida, quer dizer:
vive-a com a beleza heroica.
A imobilidade
aparente não é mais do que uma fórmula habitual de defesa: a desconfiança dos
elementos. Simula e dissimula, como a colossal natureza aluviana, que o rodeia,
recortada pelo sistema arterial de uma potamografia dedálica, que ele conhece a
fundo, desde o mais insignificante paraná-mirim, até as grandes águas das
cachoeiras atraiçoadoras.
Na alma, há
talvez um mistério que os séculos não decifram, nem apagam. Tem a melancolia
das grandes solidões – o rio imenso, a terra imensa, a mata imensa. O peso de
tudo isso é talvez grande demais para o seu espírito rudimentar.
E, quando
poderia ser, na verdade, um esmagado da própria natureza, um vencido do “terror
cósmico”, reage, brutalmente, acondicionando todas as suas energias, crenças, e
conduta à potência física do mundo bárbaro, na criação das lendas que fazem o
encanto da Poranduba Amazonense, a sua quase descoberta antologia folclórica.
O praieiro é
dramático com o destino andante das suas aventuras.
O cenário de
sua peleja exaustiva é feita de massas que se desdobram ao infinito – a
superfície das águas e a curva dos céus, num todo de pintura homogênea. Não há,
ali, o grito de uma árvore, a asa de uma montanha roçando o azul, o artifício
repousado das habitações, o tônus, enfim, humanidade que excita as incoerências
da terra multiforme.
Não há
sombras, senão de nuvens; não há músicas, senão dos ventos. O sentimento de
solidariedade, que impregna os homens da terra firme, ali não há por quem se
manifeste.
A água e o
céu, a cor e o som, acordes para o matar, aos poucos, de tédio. A solidão
oceânica o contagiou de morte. A sua jangada, madeiro miserável a que atou,
como a um poste, todas as possibilidades da sua vida errante, é o seu teatro de
tragédia diuturna. Porque mede as suas forças com as da tormenta, é simples e
benévolo com os outros homens.
A jangada dos
nossos praieiros indômitos parece uma grande asa aberta, pedida por empréstimo
aos pássaros da tempestade, que cruzam as velas aos barcos a pique de
perder-se. Ali, nas pranchas misérrimas, o homem da praia amanheceu a vida
tempestuosa. O seu sentimento é profundo e calado.
Só a sua alma
se agita, como se dentro dela recolhesse, em ressonância, os vai-vens da onda;
os ventos ébrios de cantos longínquos; as sombras que caem do alto.
Talvez por
isso é que tem, como certas aves, o sentido da procela, e a sua vida reflete a
beleza do constante perigo.
A sobriedade e
a continência marcam-lhe a fisionomia adusta; mas, quando se pensa que o amargo
mar lhe selou a alma no silêncio, ele a entorna pela boca, na tristura das
canções praieiras, a acordar a ancestralidade catalã e lusa.
Submisso e
devoto, mas tenaz; parcimonioso, como quem viu escoar-se o ouro das minas
esgotadas, ou sumir a fartura das fazendas em decadência, o caipira da baixada
ou do planalto, rasgando, sem doer, o seio da terra, extrai-lhe duramente o
sustento das cidades que se aglomeraram em torno aos seus tratos de lavrar.
A desenvoltura
do gaúcho matiza fortemente o florão dos nossos tipos raciais representativos.
Para ele, generoso, vibrante e eugênico, a vida é alegria na carreira, alegria
no labor audaz: riso à tona da boca, sentimento à mostra, coragem de sobejo.
O coração
bate-lhe no peito como um touro selvagem. Ama gloriosamente a vida, na
intrepidez das aventuras belicosas, que lhe trazem a ascendência, no ritmo do
trabalho que os antepassados metódicos lhe ensinaram, no empolgo do entrevero,
ou no langor quebrado da querência.
Aqui está,
senhores, um tipo especial do sertanejo – o vaqueiro do Nordeste. Vestido em
sua indumentária característica, encoirado como ali se diz – gibão, peitoral,
perneiras e mocó – campeia de sol a sol, dias seguidos, semanas inteiras. O
alimento, vem tomá-lo à noite, depois de esfriar o corpo. É uma resistência
física admirável, uma têmpera de causar inveja.
Conhece, de
longe, a rês. Num relance, o “ferro”. Num ápice, o “sinal” e “era”. Caracteriza
de memória todo gado da fazenda. O rol, o tempo de cór, assim como os campos,
os cantos, os malhadouros. Tem a carta ecológica da fazenda na cabeça. E todas
as suas letras, em via de regra, cifram-se aos riscos de contar primitivos, com
que satisfaz as exigências estatísticas do padrão.
A sua vida é o
dorso do cavalo, no eito do campo. Corrige os cantos, de gados, espia as
aguadas, cura os munjolos. Eito de sol a sol. E o verão é trágico. O ar, seco e
quente. É preciso que os pulmões se tornem metálicos. Eito de sol a sol. E o
aboio, melancólico, longo, como um motivo musical arrastado, um motivo
lânguido, ansioso, súplice de música hebreia, ecoa, de quebrada em quebrada,
derramando-se pelos campos calcinados.
O aboio é a
linguagem de chamar o gado. É afetivo, saudoso e monótono, como uma súplica de
coro gregoriano, profunda e dilacerante. Não se diga, porém, que o sertanejo é
triste como a música monocórdia do seu aboio: movimentando-se na caatinga
desfolhada ou no agreste sem fim, ele é apenas simples e bom.
E, como os
bons e os simples, humanamente alegre. Antes, não lhe sobra tempo para as
grandes alegrias entusiasmadas. O campo, a vaquejada, a pega, meio ano, e outro
meio, a roça para o sustento com coisa de bem pouca monta – o arroz, o feijão e
a mandioca de farinha – enchem todas as horas da sua vida fadigosa.
Quando chega a
casa, enfadado do campo ou do roçado, escravo da promessa das nuvens, a ceia a
rede já o esperam. E ali é só dormir para acordar escurinho, a tirar o leite ou
olhar as criações. Ė sua labuta de todo o ano. Às vezes, uma pinga, uma “missa
do galo”, ou um batizado, mesmo porque, Deus que lhe deu tantas canseiras, não
lhe dá de permitir muitas preocupações metafísicas, nem muitas obrigações
devocionais.
A vida é
aquela: monótona, igual, porém sua. Vida de vaqueirice. Sertanejo honesto e
trabalhador. Montado na dura sela campeira, a vida para ele é um constante
perigo, que não vê. O vaqueiro é o homem que não tem medo da vida. Transpõe, de
um salto, na carreira louca, valados e riachos. Sobe morros. Voa, em cima de
pedras. Vara, como um demônio, o mato fechado.
A vida é um
risco! Mas vale a pena como o vaqueiro exalta, na sua carreira despencada, o
desprezo das ameaças e faz, com isso, mais preciosa a vida, porque mais
perigosamente vivida. E mais bela. Porque o domínio do perigo é sempre um
movimento de beleza. E mais heroica. Porque o sentimento e a consciência do
perigo são a única real sanção de bravura.
Senhores! Aí
está um programa de trabalho urgente: a salvação desse inestimável patrimônio humano,
pela sua vinculação ao solo.
Reveste-se,
quiçá, de maior premência a sua execução – permiti-me dizê-lo – para a defesa
do sertanejo, que coopera diretamente na economia nordestina, hoje a viver os
imprevistos ciclos da cera de carnaúba e do babaçú, do cacau e das fibras, sem
esquecer o ofício tradicional da vaqueirice e da lavoura comum.
As populações
do Nordeste vão se tornando assustadoramente nômades, não apenas pelo fenômeno
periódico das secas, mas pelas condições especiais da nossa educação ocidentalizantes
e da nossa economia feudal: o “agregado”, o peão das nossas bandas, é menos do
que o servo, porque se despeja, como uma coisa, das terras, por qualquer
motivo, ou sem nenhum.
Não se trata
de migração venturosa, o pioneirismo conquistador de outros rincões. O próprio
cangaço, em que o sertanejo não raro se tem motivado pela pilhagem, não é um
fenômeno brasileiro: antecede-lhe de muito, na Europa, a atividade bandoleira
dos comitadjis...
É
indispensável racionalizar a fixação do sertanejo, dar-lhe garantias de pouso,
no amanho da terra e na permanência das possibilidades de trabalho. Ė inadiável
tornar realidade social a tendência de radicação do homem do Nordeste."
(1)
(1) MARTINS
NAPOLEÃO, Benecdito, consultor jurídico do Banco do Brasil (3/5/1967 a
16/9/1977) – Discurso proferido, em 20/2/1952, ao ensejo da aprovação do novo
regulamento da Carteira Agrícola e Industrial, em homenagem ao diretor Loureiro
da Silva – Autorização concedida, em 30/1/2007, por Igor Silva de Martins
Napoleão ao escritor Fernando Pinheiro. – In HISTÓRIA DO BANCO DO BRASIL, de
Fernando Pinheiro.
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