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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

AQUARELA BRASILEIRA

Nos idos de 1964, a Escola de Samba Império Serrano entrou na Avenida Presidente Vargas para apresentar o seu carnaval que é o Brasil em forma de aquarela e fez um passeio pelo País inteiro revelando o que existe em cada região. Quarenta anos depois, em 2004, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, na cidade do Rio de Janeiro, o samba foi reapresentado pela Império Serrano. Ao nosso ver, é o melhor samba-enredo de todos os tempos.
Na narrativa surgem vastos seringais no Norte, e no Nordeste os lindos coqueirais nas praias, o acarajé, comida típica baiana, as festas de frevo e maracatu em Pernambuco, a arquitetura de Brasília, a garoa em São Paulo, e as batucadas e os requebros febris das mulatas. Este é o cenário de comovente beleza onde se estende imensas matas, cachoeiras e cascatas.
Da obra HISTÓRIA DO BANCO DO BRASIL, de Fernando Pinheiro, transcrevemos textos autorizados do discurso de Martins Napoleão, consultor jurídico do Banco do Brasil (3/5/1967 a 16/9/1977), proferido, em 20/2/1952, no qual aborda os tipos regionais do Brasil, tema da música em pauta.
"Na pluralidade dos tipos que se ajustam e reajustam nas lutas de fixação étnica do País, e integram de um colorido inimitável a sua unidade social, econômica e cultural, cinco há que se personalizaram definitivamente, dentro e fora, na alma e no corpo: o caboclo, o praieiro, o caipira, o gaúcho e o sertanejo, com as suas características acentuadas, nas grandes zonas brasileiras.
O caboclo é a incompreendida esfinge humana da Amazônia. Tem todas as grandezas, na face de bronze e na estatura mediana do índio, cujo sangue lhe corre férvido nas veias. (...)
Solidário (não solitário), reparte a vida entre a rede armada do tejupá de construção palafita, e a igara furadora de rios. Pesca, como adivinho. O arpão é-lhe uma arma de farpear, que só encontra na flecha com que abate as caças, na espera, no corso ou no voo.
Seu horizonte visual, limita-o a cinta corrediça do rio, ou a cúpula da mataria de assombração. Pouco lhe importa, a ele na dureza do mister cotidiano, a fragilidade da montaria veloz, cavada num só tronco. Vive perigosamente a vida, quer dizer: vive-a com a beleza heroica.
A imobilidade aparente não é mais do que uma fórmula habitual de defesa: a desconfiança dos elementos. Simula e dissimula, como a colossal natureza aluviana, que o rodeia, recortada pelo sistema arterial de uma potamografia dedálica, que ele conhece a fundo, desde o mais insignificante paraná-mirim, até as grandes águas das cachoeiras atraiçoadoras.
Na alma, há talvez um mistério que os séculos não decifram, nem apagam. Tem a melancolia das grandes solidões – o rio imenso, a terra imensa, a mata imensa. O peso de tudo isso é talvez grande demais para o seu espírito rudimentar.
E, quando poderia ser, na verdade, um esmagado da própria natureza, um vencido do “terror cósmico”, reage, brutalmente, acondicionando todas as suas energias, crenças, e conduta à potência física do mundo bárbaro, na criação das lendas que fazem o encanto da Poranduba Amazonense, a sua quase descoberta antologia folclórica.
O praieiro é dramático com o destino andante das suas aventuras.
O cenário de sua peleja exaustiva é feita de massas que se desdobram ao infinito – a superfície das águas e a curva dos céus, num todo de pintura homogênea. Não há, ali, o grito de uma árvore, a asa de uma montanha roçando o azul, o artifício repousado das habitações, o tônus, enfim, humanidade que excita as incoerências da terra multiforme.
Não há sombras, senão de nuvens; não há músicas, senão dos ventos. O sentimento de solidariedade, que impregna os homens da terra firme, ali não há por quem se manifeste.
A água e o céu, a cor e o som, acordes para o matar, aos poucos, de tédio. A solidão oceânica o contagiou de morte. A sua jangada, madeiro miserável a que atou, como a um poste, todas as possibilidades da sua vida errante, é o seu teatro de tragédia diuturna. Porque mede as suas forças com as da tormenta, é simples e benévolo com os outros homens.
A jangada dos nossos praieiros indômitos parece uma grande asa aberta, pedida por empréstimo aos pássaros da tempestade, que cruzam as velas aos barcos a pique de perder-se. Ali, nas pranchas misérrimas, o homem da praia amanheceu a vida tempestuosa. O seu sentimento é profundo e calado.
Só a sua alma se agita, como se dentro dela recolhesse, em ressonância, os vai-vens da onda; os ventos ébrios de cantos longínquos; as sombras que caem do alto.
Talvez por isso é que tem, como certas aves, o sentido da procela, e a sua vida reflete a beleza do constante perigo.
A sobriedade e a continência marcam-lhe a fisionomia adusta; mas, quando se pensa que o amargo mar lhe selou a alma no silêncio, ele a entorna pela boca, na tristura das canções praieiras, a acordar a ancestralidade catalã e lusa.
Submisso e devoto, mas tenaz; parcimonioso, como quem viu escoar-se o ouro das minas esgotadas, ou sumir a fartura das fazendas em decadência, o caipira da baixada ou do planalto, rasgando, sem doer, o seio da terra, extrai-lhe duramente o sustento das cidades que se aglomeraram em torno aos seus tratos de lavrar.
A desenvoltura do gaúcho matiza fortemente o florão dos nossos tipos raciais representativos. Para ele, generoso, vibrante e eugênico, a vida é alegria na carreira, alegria no labor audaz: riso à tona da boca, sentimento à mostra, coragem de sobejo.
O coração bate-lhe no peito como um touro selvagem. Ama gloriosamente a vida, na intrepidez das aventuras belicosas, que lhe trazem a ascendência, no ritmo do trabalho que os antepassados metódicos lhe ensinaram, no empolgo do entrevero, ou no langor quebrado da querência.
Aqui está, senhores, um tipo especial do sertanejo – o vaqueiro do Nordeste. Vestido em sua indumentária característica, encoirado como ali se diz – gibão, peitoral, perneiras e mocó – campeia de sol a sol, dias seguidos, semanas inteiras. O alimento, vem tomá-lo à noite, depois de esfriar o corpo. É uma resistência física admirável, uma têmpera de causar inveja.
Conhece, de longe, a rês. Num relance, o “ferro”. Num ápice, o “sinal” e “era”. Caracteriza de memória todo gado da fazenda. O rol, o tempo de cór, assim como os campos, os cantos, os malhadouros. Tem a carta ecológica da fazenda na cabeça. E todas as suas letras, em via de regra, cifram-se aos riscos de contar primitivos, com que satisfaz as exigências estatísticas do padrão.
A sua vida é o dorso do cavalo, no eito do campo. Corrige os cantos, de gados, espia as aguadas, cura os munjolos. Eito de sol a sol. E o verão é trágico. O ar, seco e quente. É preciso que os pulmões se tornem metálicos. Eito de sol a sol. E o aboio, melancólico, longo, como um motivo musical arrastado, um motivo lânguido, ansioso, súplice de música hebreia, ecoa, de quebrada em quebrada, derramando-se pelos campos calcinados.
O aboio é a linguagem de chamar o gado. É afetivo, saudoso e monótono, como uma súplica de coro gregoriano, profunda e dilacerante. Não se diga, porém, que o sertanejo é triste como a música monocórdia do seu aboio: movimentando-se na caatinga desfolhada ou no agreste sem fim, ele é apenas simples e bom.
E, como os bons e os simples, humanamente alegre. Antes, não lhe sobra tempo para as grandes alegrias entusiasmadas. O campo, a vaquejada, a pega, meio ano, e outro meio, a roça para o sustento com coisa de bem pouca monta – o arroz, o feijão e a mandioca de farinha – enchem todas as horas da sua vida fadigosa.
Quando chega a casa, enfadado do campo ou do roçado, escravo da promessa das nuvens, a ceia a rede já o esperam. E ali é só dormir para acordar escurinho, a tirar o leite ou olhar as criações. Ė sua labuta de todo o ano. Às vezes, uma pinga, uma “missa do galo”, ou um batizado, mesmo porque, Deus que lhe deu tantas canseiras, não lhe dá de permitir muitas preocupações metafísicas, nem muitas obrigações devocionais.
A vida é aquela: monótona, igual, porém sua. Vida de vaqueirice. Sertanejo honesto e trabalhador. Montado na dura sela campeira, a vida para ele é um constante perigo, que não vê. O vaqueiro é o homem que não tem medo da vida. Transpõe, de um salto, na carreira louca, valados e riachos. Sobe morros. Voa, em cima de pedras. Vara, como um demônio, o mato fechado.
A vida é um risco! Mas vale a pena como o vaqueiro exalta, na sua carreira despencada, o desprezo das ameaças e faz, com isso, mais preciosa a vida, porque mais perigosamente vivida. E mais bela. Porque o domínio do perigo é sempre um movimento de beleza. E mais heroica. Porque o sentimento e a consciência do perigo são a única real sanção de bravura.
Senhores! Aí está um programa de trabalho urgente: a salvação desse inestimável patrimônio humano, pela sua vinculação ao solo.
Reveste-se, quiçá, de maior premência a sua execução – permiti-me dizê-lo – para a defesa do sertanejo, que coopera diretamente na economia nordestina, hoje a viver os imprevistos ciclos da cera de carnaúba e do babaçú, do cacau e das fibras, sem esquecer o ofício tradicional da vaqueirice e da lavoura comum.
As populações do Nordeste vão se tornando assustadoramente nômades, não apenas pelo fenômeno periódico das secas, mas pelas condições especiais da nossa educação ocidentalizantes e da nossa economia feudal: o “agregado”, o peão das nossas bandas, é menos do que o servo, porque se despeja, como uma coisa, das terras, por qualquer motivo, ou sem nenhum.
Não se trata de migração venturosa, o pioneirismo conquistador de outros rincões. O próprio cangaço, em que o sertanejo não raro se tem motivado pela pilhagem, não é um fenômeno brasileiro: antecede-lhe de muito, na Europa, a atividade bandoleira dos comitadjis...
É indispensável racionalizar a fixação do sertanejo, dar-lhe garantias de pouso, no amanho da terra e na permanência das possibilidades de trabalho. Ė inadiável tornar realidade social a tendência de radicação do homem do Nordeste." (1)
(1) MARTINS NAPOLEÃO, Benecdito, consultor jurídico do Banco do Brasil (3/5/1967 a 16/9/1977) – Discurso proferido, em 20/2/1952, ao ensejo da aprovação do novo regulamento da Carteira Agrícola e Industrial, em homenagem ao diretor Loureiro da Silva – Autorização concedida, em 30/1/2007, por Igor Silva de Martins Napoleão ao escritor Fernando Pinheiro. – In HISTÓRIA DO BANCO DO BRASIL, de Fernando Pinheiro.

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