Derramando uma envolvente doçura, a voz de
Solveig cantava uma canção que falava da espera do seu amado que tardava tanto
a chegar. Grieg, o compositor norueguês, a retratou em sua suíte Peer Gynt.
O
romance do casal, narrado em peça dramática pelo escritor Henrik Ibsen, começou
em olhares que buscavam a mesma direção, numa festa de casamento em que se apresentaram como convidados.
Ela
estava acompanhada de seus pais e trazia em suas mãos um livro de cânticos
enrolado num lenço. Seus cabelos de cor-de-trigo, seus olhos de um azul
turquesa brilhavam como as
lâmpadas da festa.
Apenas
um encontro de olhares, o suficiente para Solveig não perdê-lo de vista em seu
coração, embora seus olhos iriam procurá-lo pelas distâncias. O amor tem esses
enigmas, esses laços que prendem, não importando as circunstâncias.
O
tempo passa como passam as paixões que incendeiam os desejos inocentes para
depois mergulharem no vazio. E, assim, vamos encontrar, na velhice, Peer Gynt
voltando para a cabana onde
mora Solveig.
Vestida
de roupa de domingo, carregando o mesmo livro de cânticos enrolado num lenço,
como naquele primeiro encontro,
ela pressente a chegada dele e canta a canção que fala de um amor inesquecível.
Ao
ouvi-la, ele fica atônito, deslumbrado e, acostumado à vida peregrina, não sabe
o que fazer. Põe-se a correr pelos campos como a procurar o que já havia
encontrado.
Num
impulso que não entende, volta à porta da cabana completamente derrotado pelas
ilusões que buscou pelo mundo afora e pede para ela se queixar em voz alta de
todos os erros dele.
Solveig,
esbelta e doce, continuou em sua voz enternecida: “bem-vindo, meu querido, que
fez de toda a minha vida um cântico de amor! Que bom que você
voltou!”
Ainda
sentindo as emoções em desalinho que o passado refletia naqueles momentos, Peer
Gynt ficou desanimado e
falou que estava perdido.
A
voz de Solveig procura desmanchar a atmosfera sombria em que se encontrava o
seu amado, como sol que surge lentamente no horizonte diluindo as brumas do
amanhecer.
O
amor tem esse dom: desfazer o avesso e repor o lado direito, lá onde os sonhos
aparecem para revelar que a vida tem um sentido bem maior do que aquele em que
a nossa imaginação buscava
encontrar.
O
aventureiro abatido pediu à sua amada para decifrar o enigma que o atormentava:
“onde eu estive durante todo o
tempo em que você não me viu?”
A
resposta de quem ama é fácil demais: “você estava onde sempre esteve: em minha
fé, na minha esperança, meu amor”,
respondeu ela, completamente enternecida.
Peer
Gynt sentiu-se como filho que volta ao lar, e um carinho todo especial,
misturado à proteção que sua amada
estava lhe oferecendo, tocou-lhe mais fundo.
Enquanto
o sol se levantava, ela começou a cantar uma doce canção de ninar. Peer Gynt
descansava sua cabeça atribulada pelas aventuras sem direção naquele recanto
onde sentiu o seu coração bem perto de sua amada.
A
Canção de Solveig é o cântico feliz de quem ama e confia no amor. E, por assumir uma posição superior
aos declínios do caminho, a sua presença vem sempre acompanhada de proteção.
Alma
que redime alma. Não importa se a mulher revela o seu lado materno quando há
necessidade para desfazer traumas
de caminhos de espinho.
Quem
não gostaria de recompor as vestes que estão pelo avesso, apenas numa atitude
simples que revela o lado bonito onde podemos nos sentir felizes, caminhando,
passeando e principalmente ao lado dos amores que nos encantam a
vida!
A
Canção de Solveig é a canção que prepara o leito, as condições para dormir e,
num clima refeito das energias gastas, o recomeço de um novo dia em que o amor
surge como se fosse o instante
primeiro.
Blog Fernando
Pinheiro, escritor
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