Um dos mais belos solos escritos para flauta,
Dança dos Espíritos Abençoados, da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck, é uma composição
lenta e muito doce que se modula em ré menor, sustentada pelo violino pianíssimo.
Os
Campos Elíseos substitui o Inferno em que se encontrava Orfeu, a ausência da
mulher amada, depois de um canto comovedor que abrandou as fúrias. A iluminação
do cenário é completa e produz efeitos de luzes e cores.
Nesse
clima festivo e triunfante, o personagem mitológico e musical conseguiu o
milagre da transmutação, o sonho em realidade tangível, a presença da sua amada
que saiu do mundo das sombras, a vitória do amor acima das circunstâncias transitórias.
Quando
os amores estão reunidos em êxtase, a melodia paradisíaca se desdobra suave,
bem suave e um grupo de espíritos se rejubila caminhando em passos cadenciados
que se transformam em dança.
A
composição musical de Gluck retrata a lenda mitológica de dois amores que se
separam em mundos diferentes, mas permanecem ligados pela lembrança, pelos olhares
que lhes revelaram a alma, pelo amor que ultrapassa barreiras.
Adormecida
em sono letárgico, Eurídice não tinha condições de manter vivo um
relacionamento de um passado feliz. Mas a ligação
que a prendia estava tão perto dela
como os fios elétricos ligados a uma tomada.
A
mensagem do compositor alemão se amplia universalmente para mostrar que a
criatura humana está cercada pelos amores e, nos passos em direção à plenitude,
busca sempre aqueles que permanecem distraídos ou entorpecidos por substâncias
estranha. Ninguém caminha sozinho.
O
canto de Orfeu, em sua lira imortal, é a exaltação da vida, é o canto da Terra,
simplesmente porque é o amor atuante que vibra até às sombras para trazer de
volta quem para ele era Deus mais próximo.
Mesmo
cantando o amor, Orfeu estava impaciente antes da chegada de sua amada, como
acontece a todos nós diante do desenrolar dos acontecimentos em que buscamos
promover nossos sonhos. Nossos amores nos preocupam quando não sabemos a
direção de seus passos.
Cercado
de vibrações tumultuadas, o personagem mitológico coloca toda sua alma naqueles
momentos em que sente que deve continuar cantando. Nem mesmo se importaria se o
seu canto iria ou não sensibilizar quem estava lhe ouvindo. Queria apenas cantar
para extravasar sentimentos profundos.
Isto
vem nos provar que o amor não se projeta prevendo benefícios, mas se revela
espontâneo como força que dá expansão ao fluxo que aglutina as situações do
amanhã, num processo contínuo e
eterno.
Na
caminhada dos amores há incidentes que nos fazem refletir sobre a dança das
horas, a dança dos ventos, a dança dos espíritos abençoados quando o nosso amor
consegue despertar quem não estava entendendo o nosso coração.
A
questão familiar, a questão social, a questão planetária está baseada no
conceito de que tudo se interliga e é impossível caminhar isoladamente ou mesmo
em grupos sectários. Na caminhada para ser feliz, a humanidade busca a
mesma direção.
O
sentido gregário, no caminhar dos animais, já nos revela a ideia de que o
homem, mais cedo ou mais tarde, acompanhará esse movimento da natureza,
fazendo-o de modo consciente e com maior abrangência em todos os níveis:
pessoais, familiares e sociais.
Blog Fernando Pinheiro, escritor
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