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sábado, 29 de setembro de 2012

A FLOR DE AGUAPÉ


    Escrito para o Canto Coral Feminino do Instituto de Música de São Paulo, a música A Flor do Aguapé, de Paulo Florence (1864/1945), é destinada para sopranos e contraltos e apresenta os seguintes movimentos: suave, vocalizando, mais vivo, diminuindo, vocalizando, poco crescendo, diminuendo. A letra foi composta por Dom Aquino Corrêa, imortal da  Academia   Brasileira   de   Letras.   
Com letra de quem conheceu as paisagens íntimas  da alma humana e, externamente, a do pantanal mato-grossense, região onde foi bispo da Igreja Católica, com    grande elevação espiritual, a música descreve um roteiro em   que  o  mundo  está  envolvido.
O sacerdote observa a beleza da flor de aguapé se abrindo em largas e verdes folhagens com a presença de     beija-flor voejando e beijando-a ao redor. Há um clima de   festa,  a  flor  triste  um  pouco  antes,  com  o  beijo  palpita  e  sorri.
         Com  a  enchente,  o  cenário  singelo  muda  de figura.  Os  roncos  da  enchente    anunciam  a  derrocada  que  vem  surgindo.  Surgem  pedaços  de  terras  flutuando  descendo   rio abaixo, num deles está descendo a flor de aguapé, murcha  de  mágoas.
       Esta imagem descritiva tem grande ressonância em   nossos dias quando vemos cenas de desencantos nos  ambientes onde o vício arrasta à degradação moral  contingentes de pessoas que, após a aparente alegria, são levados  à  solidão  e  à  morte.
        A  beleza  do  corpo  -  a  flor  do  aguapé  -  floresce  em  nossa  vida  para  dar  encanto  a  este  mundo  que  um  dia  terá  as  blandícias  do  paraíso,  esta  é  a  certeza  daqueles  que  vieram  ao  mundo  somente  para  servir.  Nem  todas  as  flores  são  arrebatadas  pelas  enchentes  dos  rios,  como  nem  todas  as  criaturas  humanas têm  o  mesmo  destino.
       Os desencantos surgem para mostrar o desvio do   caminho.  A  mágoa  -  raiz  arrancada  pelos  estos  bravios  -   é  o  desconforto  do  momento  e  vai  recrudescer,    adiante aonde  a  aurora  vem  surgindo  límpida  e  clara,  a  lembrança dos dias felizes, os amores que nos ofereceram ternura,   abraços  e  beijos.
       Na segunda voz de A Flor de Aguapé há um canto  transformado em beijos que Alberto Nepomuceno, na música  As  Uyáras,  op. 15,  decifra:
“...  Às  vezes  se  escuta  na  queixa  do  rio  um  canto  macio  de  quem...  não  se  vê. /  O  canto  se  estende  mais  doce  que  as  moitas  que  dormem  silentes  às  luzes  do  céu...”
       Identificado  o  brilho  das  bolhas  de  sabão,  ninguém  o  pega, ninguém o cultiva, ninguém o colherá! São beijos que     as uyáras atiram ao sol, morrendo sempre na ilusão! A luz do arrebol é a imagem de fé que prevalece diante das  paisagens  onde  vive  a  flor  do  aguapé.  Os  destroços,  o  caminhar para a morte estão agora à mercê do destino que   não  podemos  saber.
        Boiando  pelo  rio  abaixo,  os  camalotes  que  carregam  a  flor  de  aguapé  têm  o  destino  da  destruição,  o  mesmo  daqueles  que  encobriram  com  camadas  sombrias  a  luz  divina  que  está  ofuscada  interiormente.  As  sábias  palavras do saudoso bispo católico (duas vezes imortal) permanecem    em  nosso  coração:
“Que  Deus  se  amerceie  da  flor  e  das  almas  que  vão  para  além  e  leve-as  ao  porto  em  que  viçam  as  palmas  do  amor  e  do  bem.”

Blog  Fernando Pinheiro, escritor

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