CANÇÃO DA FUGA IMPOSSÍVEL
O início da Canção da fuga impossível, do maestro e compositor Cláudio
Santoro, escrita no compasso 2/4, clave de sol, é apresentado no movimento lento.
A letra da canção é de Ary de
Andrade que revela um barqueiro lançando–se ao mar, em direção da praia lunar,
buscando esquecer os ecos do mundo, e levando consigo um resto de sonho e
conclui pensativo: “Como é que sonhei a fuga
da vida se a alma na terra deixei repartida?”
Acompanhando o mesmo sentido da
letra da música, opinamos que aceitar a vida tem ligação profunda com os sonhos
que nascem nas fontes límpidas. Não procurar nem fugir daquilo que já nos
pertence, como as circunstâncias, as pessoas, as tarefas que estão em nosso
convívio.
Muitos buscam tenazmente
realizações no campo dos sentimentos, desejam conhecer pessoas que lhes
preenchem as horas vazias e, uma vez conseguidas, separam-se num clima de
indiferença, sem perceber os liames que permanecem fragmentados no
espaço-tempo.
No giro das órbitas, esses liames
afetivos circulam ao redor de quem os fez surgir, independente de rejeição que
recebem ao se aproximar. A lacuna está sempre inclinada à força que lhe dê
transmutação.
As oportunidades que promovem o
encontro e a possibilidade de estarem ligados, permanentemente, surgem a cada
instante. Os olhares, os sorrisos e o suspiro numa saudade alteram-se
constantemente.
A vida surge como as notas do
piano, lançadas no ar, os prelúdios, as sonatas, as sinfonias, os concertos. Os
sons elaboram imagens que criam situações intimamente ligadas ao nosso mundo
íntimo.
Assim são as pessoas, umas são
prelúdios de um romance que floresce apenas uma vez como a flor dos aloés,
outras são concertos de variações bastante diversificadas, outras ainda são
sinfonias que incorporam um conteúdo musical bem mais amplo.
Se a vida nos dá lua e estrelas,
ventos e maresias, chuvas e trovoadas, neblina e cerração, pôr de sol romântico
e luar derretido em prata, por que ainda teríamos de buscar novas paisagens?
Quando assumimos uma posição de
súplica em que o desejo vibra como o metal no fogo, estamos criando situações
do destino que virá na intensidade em que foi suplicado, embora haja forças
circunstanciais anulando a nossa participação como a semente lançada em solo
estéril.
As circunstâncias desfavoráveis
são avisos importantes que repercutem como os sinos das catedrais,
despertando-nos a fé, qualquer que seja
a nossa ideologia. As dificuldades ajudam-nos a refletir nos sonhos que
trazemos do berço.
Como é do conhecimento de muitos, o pensamento é força
que irradia nossos sentimentos. Buscar aproximação de pessoas e situação que
desconhecemos é o mesmo que embarcarmos em canoa descendo regiões montanhosas.
Do mesmo modo, fugir de tudo
aquilo que nos chega, sem termos a capacidade de identificar o que nos convém,
seria tão desastroso como descer as cachoeiras dos grandes rios.
Os desencantos das noites escuras são refletidos nas
paisagens íntimas daqueles que buscaram os sonhos que não lhes pertencem e
fugiram dos encontros de pessoas que o destino lhe reservou nos luares em
eclipse.
Desligado da consciência grupal,
do âmbito onde circula, o homem cria o deserto íntimo onde só existirá oásis se
as condições em que estiver mergulhado forem abrandadas pelos seus gestos de
recomposição.
Esses gestos são originários da
luz que se irradia, a radiança imortal de sua realidade que foi obtida do não
agir, mas ao abandonar-se à luz que trabalhou nele a ação que o faz
crescer em patamar de grandeza.
Blog Fernando Pinheiro, escritor
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